Foto: Alan Santos/PR
A Procuradoria-Geral da República (PGR) afirmou, em alegações finais na ação penal que investiga tentativa de golpe de Estado, que o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) "figura como líder da organização criminosa" que buscou ruptura democrática e institucional após as eleições de 2022. "Por ser o principal articulador, maior beneficiário e autor dos mais graves atos executórios voltados à ruptura do Estado Democrático de Direito", disse o procurador-geral da República, Paulo Gonet, em documento com mais de 500 páginas.
Alegações finais da PGR pedindo condenação de Bolsonaro e sete réus do chamado "núcleo crucial" da trama golpista, entre ex-ministros e ex-comandantes das Forças Armadas, foram enviadas nessa segunda-feira (14) ao Supremo Tribunal Federal (STF).
A defesa do ex-ajudante de ordens e delator, tenente-coronel Mauro Cid, tem 15 dias para se manifestar. Depois, advogados dos outros acusados também têm 15 dias, contados de forma simultânea.
Atuação de Bolsonaro "teve por objetivo último continuação ilegítima no comando do país": veja argumentos de Gonet
O documento assinado por Gonet afirmou que Bolsonaro "instrumentalizou o aparato estatal e operou, de forma dolosa, esquema persistente de ataque às instituições públicas e ao processo sucessório".
Um dos pontos inaugurais desse projeto de poder, como já apontado anteriormente pela PGR, foi a live de 29 de julho de 2021, feita no Palácio do Planalto e "voltada a direcionar a opinião pública para a hipótese de insurreição". Nessa transmissão, o ex-mandatário reuniu alegações falsas sobre o processo eleitoral brasileiro.
Para levar intenções golpistas adiante, o ex-presidente contou com "com o apoio de membros do alto escalão do governo e de setores estratégicos das Forças Armadas". "Mobilizou sistematicamente agentes, recursos e competências estatais, à revelia do interesse público, para propagar narrativas inverídicas, provocar a instabilidade social e defender medidas autoritárias", acrescentou o procurador-geral.
"A sua atuação, pautada pela afronta à legalidade constitucional e pela erosão dos pilares republicanos, teve por objetivo último sua continuação ilegítima no comando do país e o enfraquecimento das instâncias públicas, em negação do princípio da alternância democrática, da soberania popular e do equilíbrio entre os Poderes", disse Gonet.
Nesse sentido, por exemplo, Gonet citou a utilização ilegal da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), no caso que ficou conhecido como "Abin paralela", para "espionar adversários políticos e agentes públicos considerados 'infiéis' aos interesses do grupo no poder".
"A existência dessa estrutura oculta é prova da lógica de aparelhamento institucional implementada pelo réu", explicou o procurador-geral. A PGR também analisou o "escalonamento da agressividade discursiva" a partir de eventos como aquela live de 2021.
Em ato público no feriado de 7 de setembro daquele ano, Bolsonaro chegou a xingar de "canalha" o ministro Alexandre de Moraes, relator de ações que envolvem o ex-presidente no STF, e prometeu que deixaria de cumprir ordens da Corte. Segundo Gonet, essa escalada de falas virulentas não partiu de algo "episódico nem improvisado".
"Integrava a execução de plano orientado à corrosão progressiva da confiança pública nas instituições democráticas. A deslegitimação seletiva de agentes do Estado – especialmente ministros do STF e do TSE – cumpria a função de preparar simbolicamente o terreno para ações excepcionais, apresentadas à opinião pública como reativas, e não golpistas", escreveu a PGR.
Estratégia de Bolsonaro: atacar urnas para "contestação de resultados"
Gonet afirmou que estratégia de Bolsonaro e aliados era "deslegitimar os pilares da República, com ataques às suas autoridades, preparando terreno para a contestação de resultados das urnas e atuando para mobilizar apoiadores de objetivos inconstitucionais".
O resultado das eleições de 2022, com a vitória do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no segundo turno, "motivou o movimento antidemocrático". "Articulado em setores das redes sociais alinhados com as premissas insurrecionistas da organização criminosa, contra o sistema eleitoral, contra a representatividade dos membros do Congresso Nacional, contra a autoridade do Supremo Tribunal Federal e contra a posse do candidato afinal eleito", lembrou o documento.
Depois da derrota nas urnas, Bolsonaro e aliados, de acordo com a PGR, passaram a inflamar apoiadores nas redes sociais para "um levante contra o Estado de Direito e o governo eleito". Gonet enumerou ações práticas organizadas à época, como fechamento de rodovias em diversos pontos do país e instalação de acampamentos de apoiadores em frentes de unidades militares, "a mais notória delas, em frente do Quartel-General do Exército em Brasília".
Gonet afirmou que o "apogeu violento desses atos previstos, admitidos e incentivados pela organização criminosa ocorreu no dia 8 de janeiro de 2023", com as depredações e invasões às sedes dos Três Poderes, em Brasília.
"Núcleo crucial" do golpe conhecia e dirigia movimentos de apoiadores, diz PGR
Gonet disse não ter visto nada de espontâneo nessas manifestações. "Os procedimentos se mostravam coordenados e articulados, nos moldes do almejado pela organização criminosa", apontou. Segundo alegações finais, o "núcleo crucial" esteve "em constante interlocução com as lideranças populares, agindo de forma estratégica e deliberada".
"Essa interação não era de natureza casual; ela configurava um direcionamento claro e sistemático, com o grupo demonstrando pleno conhecimento sobre todos os movimentos a serem realizados por seus apoiadores", continuou a PGR.
O procurador-geral também falou em "cenário armado" para a próxima etapa do "projeto de sedição, em que seriam intensificadas as demandas por ações militares, elaborados os documentos necessários para a formalização do Golpe de Estado e praticadas outras mais medidas de força orientadas a viabilizar o seu êxito".
Réus mantiveram "ambiente propício à intervenção militar", e Bolsonaro "desempenhou papel central"
Conforme detalhamento de Gonet, a organização criminosa manteve "ambiente propício à intervenção militar" e "se preocupou em dar continuidade ao sentimento de suspeita e de inconformidade popular, especialmente nos acampamentos formados em frente às instalações militares". Novamente, o núcleo duro bolsonarista recorreu às redes sociais, elevando "produção de notícias falsas e maliciosas sobre o sistema eleitoral brasileiro".
"A crença na fraude da eleição de Lula da Silva era crucial para que se obtivesse adesão e entusiasmo popular à causa do solapamento das instituições democráticas, dessa forma também predispondo mais militares – sobretudo os mais graduados – para a insurreição", argumentou a PGR.
Por fim, mais de uma vez ao longo do documento, Gonet afirmou não haver dúvidas sobre liderança de Bolsonaro à frente do movimento golpista. "Em última análise, o exame dos fatos e das evidências revelam que JAIR BOLSONARO desempenhou um papel central na orquestração e promoção de atos antidemocráticos", escreveu.
"Sua liderança sobre o movimento golpista, o controle exercido sobre os manifestantes e a instrumentalização das instituições estatais, para fins pessoais e ilegais, são elementos que provam, sem sombra de dúvida, a responsabilidade penal do réu nos atos de subversão da ordem democrática", completou.
A PGR concluiu que fatos narrados nas alegações finais "não deixam dúvida de que o cenário de instabilidade social observado após o resultado das eleições de 2022 foi fruto de uma longa e meticulosa construção por parte da organização criminosa, que, desde 2021, se dedicou à incitação de intervenção militar no país".